Abordagens Sócio-Antropológicas da Luta/Jogo da Capoeira

O estudo em pauta igualmente delimitou-se geograficamente. No continente africano, na análise das expressões culturais dos povos africanos para o Brasil traficado, por acreditar serem muitas delas concorrentes para as raízes formadoras de quaisquer das formas de expressividades identificadas na Capoeira.

No Brasil, concentrou-se a pesquisa nos Estados da Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco, São Paulo e Minas Gerais, por considerar terem neles ocorridos o maior fluxo de negros escravizados e os principais ciclos económicos brasileiros, e consequentemente os principais focos de rebeliões escravas, onde provavelmente a expressão em estudo teria assumido a característica de arte marcial. Igualmente foram enquadrados na delimitação geográfica os Estados citados por serem, em função do exposto anteriormente, os que mais apresentaram evidências concretas da existência de indivíduos capoeiras permeando as ditas sociedades e, igualmente, a da presença da Capoeira nos seus limites geográficos, bem como do seu desenvolvimento, difusão e transformação desta manifestação corporal em solo brasileiro, fundamentando-me basicamente na bibliografia pertinente a estas temáticas.

O segundo percurso funda-se na análise dos factores que concorreram para a transformação da Capoeira enquanto expressão de defesa pessoal para uma prática desportivizada, reconhecendo ter ocorrido neste caminho algumas características que permitiram a sua divisão em quatro momentos distintos mas complementares, todos eles decorrentes de vários condicionalismos sociais.

0 primeiro momento foi identificado como o da pré-desportivização da Capoeira, onde foram evidenciados elementos que já indicavam os novos rumos estabelecidos para a expressão atrás referida, os quais culminaram nos momentos seguintes, identificados como o da afirmação, consolidação e oficialização desta como prática desportivizada, reconhecida pelas autoridades desportivas do Brasil.

A terceira transformação da Capoeira enquanto prática de luta de defesa pessoal para uma prática de natureza lúdica no contexto social brasileiro, foco principal deste estudo, decorre do posicionamento aludido no início deste tópico, ou seja, de ter este processo ocorrido no decurso deste século. Na defesa deste argumento foram evidenciados quatro momentos fundamentais que concorreram para o aparecimento deste fenómeno social. O primeiro fundado na sua identificação nominal, que a priori já a enquadrava como expressão de natureza lúdica, apesar de historicamente não se ter evidenciado características que confirmasse esse carácter.

O segundo contexto propiciador da transformação em foco neste capítulo decorre do processo repressivo implantado pelo sistema jurídico-policial contra os indivíduos capoeiras e consequentemente contra os exercícios de agilidade e destreza praticados por alguns destes personagens da nossa história, o qual concorreu decisivamente para a ocorrência de adaptações no âmbito desta expressão, onde foi esta prática violenta, apropriada pelas crianças, deixando-se antever uma possível transgressão da ordem imposta pelo dito sistema, ao tempo que se configurava com as características inerentes às expressões de natureza lúdica. Ainda em decorrência do processo repressivo aludido, pude constatar a ocorrência de uma gradual pacificação das emanações violentas dos praticantes da luta da Capoeira, fazendo-me compreender a perspectiva da submissão à ordem por parte dos indivíduos adultos, com a finalidade de preservar a sua integridade fisica, a sua liberdade e, por fim, a sua prática ancestral de defesa pessoal.
Analisando mais detidamente a forma de sublimação e consequente adaptação introduzida pelos indivíduos adultos, detectei aspectos e funções inerentes à expressão foco deste estudo enquanto actividade de cariz lúdico, evidenciando-se as intenções do acto lúdico presentes na emanação adaptada da forma inicial, das relações existentes entre os sujeitos praticantes do jogo de facto, os sentidos nele presentes, a sua delimitação espacial, e, por fim, a presença de instrumentos propiciadores do acto lúdico, elemento este fundamental para o seu enquadramento como actividade de natureza lúdica.

O terceiro momento da transformação da Capoeira enquanto matriz de cariz lúdico decorre de factores político-sociais, sendo o nacionalismo do fim do império e início da República, bem como da política nacionalista preconizada pelo Governo getulista, emanado principalmente pelos intelectuais dos períodos aludidos, que viam nesta forma de manifestação de luta de defesa pessoal um elemento concreto para consolidar as suas ideias e ideais.

O último contexto fundamenta-se na perspectiva revivalista adoptada pelos praticantes da expressão de defesa pessoal, voluntária ou involuntariamente, que, sublimando e adaptando uma expressão considerada atentatória à integridade fisica dos pacatos cidadãos, concorria igualmente para a preservação social da Capoeira e de elementos ancestrais das sociedades africanas para o Brasil traficadas, muitos em vias de extinção neste novo país. Destes elementos, que a meu ver foram fundamentais para a adaptabilidade e pacificação da luta, e consequente enquadramento como elemento lúdico, sobressaem a musicalidade, a instrumentalidade rítmica, a oralidade e a ritualidade.

O desenvolvimento deste estudo funda-se na interpretação da Capoeira e da vida dos indivíduos identificados pela alcunha de capoeiras,assumindo, por um lado, um carácter histórico-social que comporta considerações da origem, desenvolvimento e modificações ocorridas nesta luta em solo brasileiro, análises dos espaços armazenadores de negros escravos e das suas principais emanações culturais, análise das organizações sociais denominadas quilombos nos mais variados aspectos e, por outro, considerações de natureza antropológica dos mais distintos contingentes populacionais traficados para o Brasil no período escravocrata e dos processos aculturativos decorrentes do carácter aglutinador dos quilombos, senzalas e fazendas.

Nos contextos aludidos, foram ainda tidos como significativos para o trabalho em pauta a consideração de factores sociais, políticos, religiosos, ritualísticos, guerreiros, festivos e culturais, os quais, indubitavelmente, concorreram para que ocorressem modificações estru¬turais no âmbito da Capoeira, mais especificamente no contexto do jogo.
Para o desenvolvimento deste estudo foram delimitados os séculos XIX e XX, por apresentaram estes evidências concretas da sua existência e consequente afirmação social da Capoeira na sociedade brasileira, bem como do aparecimento de emanações distintas da sua expressão inicial. Apesar de serem. delimitados os século supra-referidos, foram também efectuadas incursões sobre documentos do século XVIII, que retractassem a vida dos negros escravos, especificamente a dos negros reconhecidos por capoeiras, visando fundamentalmente exaurir todas as possibilidades de evidências da expressão referida que pudessem indicar variedades de emanações no cenário brasileiro.

No respeitante à metodologia desenvolvida neste estudo, cuja natureza se apresenta como sendo de carácter histórico-social e antro¬pológico, foram realizados os seguintes procedimentos:

a) Pesquisa bibliográfica o Ievant eato bibliográfico realizado subdividiu-se primeiramente na análise da do rt tação específica sobre a Capoeira para quaisquer das suas incursões temáticas em bibliotecas, arquivos, centros de documentação, institutos e museus. Deste levantamento destacaram-se livros, capítulos de livros, revistas e artigos de revistas nacionais e estrangeiras, revistas de arquivos históricos e institutos. A segunda parte desta pesquisa bibliográfica centrou-se na análise da documentação que mantém estreita relação com a natureza do estudo pretendido, referente à vida dos negros-escravos no Brasil, dos quilombos brasileiros, das rebeliões escravas, das manifestações folclóricas brasileiras no decurso dos séculos XVI a XX A terceira parte desta análise bibliográfica localizou-se em órgãos portugueses de natureza idêntica às referidas acima, todavia, concentrando-se na obtenção de referencias sobre o tráfico negreiro e manifestações culturais de origem africana dos povos traficados para o Brasil.

b) Pesquisa documental: esta pesquisa documental igualmente centrou-se no levantamento de registos documentais referentes à vida dos negros escravos ou forros no Brasil no decurso dos séculos XVIII a XX, obtidos fundamentalmente em arquivos públicos nacionais nos Estados aludidos anteriormente e, esporadicamente, em arquivos portugueses. Os documentos colectados foram de origem jurídica e policial, regulamentares, decisões, oficios, bandos, ordens, cartas, patentes, posturas municipais, códigos penais, representações, relatórios, correspondências e periódicos de época. Ainda neste contexto,, assistiu-se no Museu de Etnologia e Etnografia de Lisboa a oito (8) filmes referentes a manifestações culturais de alguns dos povos africanos, onde a dança, os cânticos, os instrumentos musicais e os movimentos corporais foram os focos principais de observação.

c) Entrevistas: as entrevistas foram realizadas com mestres de Capoeira dos Estados da Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais, com historia dores e etnógrafos, destinando-se as mesma a elucidação, confirmação ou mesmo negação de informações historicamente difundias pelos antigos mestres vinculados directamente à manifestação aludida, buscando igual¬mente obter impressões pessoais sobre a perspectiva do desenvolvimento desta expressão como elemento de cariz lúdico, consubstanciando outras informações difundidas nas bibliografias existentes.

Segue em nota de rodapé os organismos envolvidos nos itens a e b e a referência nominal dos indivíduos entrevistados.

O estudo em pauta apresentou-se com uma perspectiva analítico-descritiva, buscando enquadrar historicamente os distintos momentos das diversas emanações da Capoeira no contexto nacional, primeiramente, o da contextualização enquanto matriz de guerreira, secundando-se a sua afirmação como expressão de defesa pessoal, e, finalmente, a sua emanação como expressão de natureza lúdica. Para este efeito o estudo apresentou-se dividido em quatro capítulos.

No primeiro capítulo, denominado A luta, o jogo, o desporto, busco de forma sucinta, identificar os principais pressupostos teóricos do jogo, do desporto e das práticas de defesa pessoal, objectivando o enquadramento da Capoeira nos âmbitos referidos, para, deste modo, sustentar teoricamente as' análises a serem efectuadas nos capítulos subsequentes.

0 segundo capítulo, titulado como CAPOEIRA: um nome, uma origem. Uma nova abordagem teórica, busca reinterpretar as diversas teorias nominais acerca da denominação atribuída historicamente à luta corporal brasileira, por reconhecer serem inconsistentes cientificamente os fundamentos apresentados nas proposições que buscam definir-se como efectivamente esclarecedoras da teoria nominal da expressão em foco, as quais, permeiam a literatura pertinente a esta temática. Assim reconhecendo, e percebendo a evidente similitude da dita denominação com aquela atribuída aos malfeitores contumazes dos diversos períodos históricos brasileiros, isto para todas as acepções a ela atribuídas quer no Brasil, quer em Portugal, quer em África, buscou-se a elaboração de um novo constructo teórico que comportasse fundamentos científicos extraídos do contexto social donde emanou a expressão de múltiplas facetas.

O terceiro capítulo, Capoeira, luta ou jogo ou jogo e luta?, apresenta-se de forma interrogativa, visto ser unânime a dúvida entre os estudiosos desta temática quanto a ter sido a expressão em pauta, uma forma de luta ou uma forma de jogo, ou mesmo ambas, concomitantemente, durante os períodos colonial e imperial. Acreditando ter sido a dita manifestação corporal nos períodos retro-referidos, uma efectiva forma de expressão de luta, busquei identificar as principais características e atitudes emanadas pelos praticantes da Capoeira, formas de repressão e punições adoptadas pelo sistema jurídico-policial, para, deste modo, evidenciar a sua agressividade e violência e, consequentemente, atentatória à integridade física dos cidadãos, diferençando-se substancialmente das emanações lúdicas conhecidas nos espaços de tempo aludidos.

A análise documental e bibliográfica possibilitou a subdivisão da identificação das características emanadas pelos praticantes da Capoeira em dois períodos distintos, todavia complementares, sendo o primeiro, para a primeira metade do século XIX, cujas interpretações recaem sobre uma perspectiva individualizada das atitudes dos indivíduos capoeiras, malfeitores contumazes, considerados em generalidade praticantes da expressão retro-referida. A segunda metade do século XIX apresenta uma interpretação das formas colectivas de exteriorizações das atitudes violentas dos indivíduos capoeiras, e provavelmente da expressão de luta, como mais uma dessas formas de violência social, contextos estes que favorecem a criminalização das atitudes dos indivíduos referidos e igualmente dos exercícios de agilidade e destreza corporal. A conclusão do capítulo, face às formas de exteriorizações individuais e colectivas da Capoeira, evidenciam, incontestavelmente, ter sido eia no decurso dos períodos colonial e imperial, uma efectiva expressão de luta corporal, em detrimento da compreensão de jogo lúdico, que é difundido no contexto bibliográfico desta temática.
 
O quarto e último capítulo deste estudo, identificado como A transformação da Capoeira enquanto actividade guerreira para uma actividade lúdica, fundamenta a sua abordagem na perspectiva de ter ocorrido processos múltiplos de transformação da expressão em apreço no decurso dos distintos períodos históricos brasileiros, consubstanciando-se concretamente a transformação da sua emanação inicial em actividade de natureza lúdica tão somente durante as primeiras décadas do século XX. Para evidenciar o posicionamento retro-referido, foram realizados alguns percursos, passando, primeiramente, pela indicação de se ter transformado a Capoeira enquanto prática guerreira colectivizada numa prática individualizada de defesa pessoal no decurso do período colonial, destarte, a primitividade e a quantidade dos movimentos que corporificavam esta forma de emanação.